Alguns autores marxistas sustentam que as relações capitalistas são a causa da degradação ambiental.' Como resposta a este argumento é comum escutar que os ex-países socialistas degradavam a natureza tanto ou mais que os países capitalistas. Está implícito nessa resposta o argumento de que as relações econômicas pouco explicam o comportamento ambiental. As seguintes reflexões pretendem esclarecer alguns pontos desta discussão. A resposta à discussão acima posta requer três tipos de reflexão. O primeiro é reconhecer que um mesmo produto pode ser resultado de diferentes causas e mecanismos. O segundo é distinguir entre as tendências que provêm da estrutura do sistema, dos casos particulares. O terceiro é desvendar as forças que guiam a degradação no capitalismo e no socialismo.
“Um mesmo
produto pode ser resultado de diferentes causas e mecanismos”
Uma metáfora
pode ajudar a introduzir este argumento. Suponhamos que uma pessoa visite um
médico preocupada com uma coceira no braço. O paciente sugere que pode ser
devido a uma intoxicação. O médico receita algo e o indivíduo se cura. Dias
depois, outro indivíduo com uma coceira semelhante visita o mesmo médico. Não
identificam nenhuma causa, mas o médico supõe que pode ser uma intoxicação
semelhante e receita o mesmo medicamento anterior. Mas, não há cura. Tempos
depois, se descobre que o paciente, ao sair de sua casa, havia roçado em uma
planta de urtiga que provocou a coceira. Ou seja, duas causas diferentes para o
mesmo problema. Não obstante, não se conhece a causa, não há forma de curar.
Para a degradação ambiental, a moral é que duas causas e mecanismos diferentes
podem provocar degradação, mas se não se conhecem as causas e os mecanismos é
difícil estabelecer políticas para correção. Se, no lugar da degradação,
pensamos na produção agrícola, o exemplo pode ser semelhante. Ao mercado chegam
produtos que foram produzidos utilizando-se inseticidas, praguicidas,
herbicidas e outros produtos contaminadores; mas também chegam produtos
similares, produzidos com técnicas não contaminadoras. O resultado é o mesmo:
tomates. Ou seja, o produto não nos diz nem as causas nem os mecanismos
mediante os quais foi produzido. Os estudos sobre as causas da degradação e/ou
contaminação da natureza costumam distinguir entre causas estruturais e causas
diretas ou imediatas 2 . Assim, por exemplo, a causa direta da contaminação
atmosférica urbana pode ser o transporte de veículos, mas a causa estrutural é
o sistema de transporte baseado no automóvel individual. A causa direta da
contaminação do solo e da água pode ser o uso de agrotóxicos, mas a causa
estrutural pode ter como raiz o sistema de produção para o mercado que força o
aumento dos rendimentos menosprezando a sustentabilidade ecológica de longo
prazo. Em qualquer caso, se não se conhecem as causas estruturais, as medidas
de política ambiental podem não ser muito efetivas. A conclusão desta primeira
reflexão é que degradações semelhantes podem ser resultados de motivações e
mecanismos diferentes.
“As
tendências gerais e os casos particulares”
Colocar a
discussão em termos de se os países capitalistas degradam mais ou menos que os
socialistas é, em certo sentido, enganoso. Pode ser válido se se distinguem,
primeiro, tendências derivadas da estrutura de funcionamento capitalista e
socialista e, além disso, se se mantém a análise em um nível puramente teórico.
Quando se introduzem casos concretos, a análise anterior já não é mais válida,
uma vez que além das tendências intrínsecas ocorrem fatos políticos e diversas
características particulares. Tomemos o caso dos países capitalistas. Seria
absurdo sugerir que todos eles têm níveis semelhantes de degradação da
natureza. Existem vários índices que comparam os desempenhos ambientais dos
países. Um deles é o Environmental Performance Index (EPI) . O EPI agrupa, por
sua vez, vários índices sobre os seguintes temas: qualidade do ar, da água,
impacto na mudança climática e proteção do solo (áreas protegidas, áreas de
resíduos, reciclagem de vidro e papel). A figura 1, que reproduzimos do
relatório principal do EPI, mostra o desempenho ambiental para 23 países
capitalistas.
A
relação entre o indicador de capacidade Social e Institucional do ESI e o
desempenho Ambiental segundo o EPI
A figura
mostra, em primeiro lugar, a disparidade entre os países. A Grécia, que está na
base da escala, tem um desempenho de 35,5, que é menos da metade do que atinge
a Suécia, que está no topo, com 74,9. De modo que o caráter das economias
(neste caso, todas capitalistas) não é determinante de seu desempenho
ambiental. Em segundo lugar, a figura mostra uma estreita correlação (de 0,71)
entre o índice de "capacidade institucional e socia1 114 em relação ao
desempenho ambiental medido pelo EPI (0,34). Isto leva os autores do EPI a
assinalarem que a capacidade institucional e social é mais importante que o
grau de pobreza para um bom desempenho ambiental, e que esforços para melhorar
a governabilidade levariam a melhores resultados ambientais. 5 O mesmo
acontecia nas economias socialistas. A análise realizada por Pavlínek &
Pikles 6da degradação ambiental em cinco países da Europa Central (Polônia,
República Tcheca, Eslováquia, Hungria, Bulgária, Romênia e Albânia), durante o
período de socialismo de Estado, rompe com o dogma de considerar que a
degradação da natureza nos ex-países socialistas como constante e homogênea.
Uma conclusão geral sobre as últimas duas décadas de seu período socialista é
que tais países tentaram seriamente - contra o que comumente se diz no Ocidente
- aliviar a degradação ambiental, no mesmo momento em que isso ocorria no
Ocidente. As medidas tomadas incluíam uma legislação ambiental Com limites de
contamina- ção muitas vezes mais severos que no Ocidente. Também a transição à
energia nuclear - apesar de Chernobyl em 1986 - foi considerada uma alternativa
mais limpa que as centrais energéticas baseadas no carvão. Mas, tendo
conseguido reduzir os índices de contaminação, as ações práticas foram
limitadas, na medida em que estavam subsumidas ao sistema econômico e político
socialista que colocava à frente de tudo o sistema de industrialização forçada.
Segundo Pavlínek & Pickles, 8 o caráter mais extensivo do que intensivo da
produção socialista foi, pouco a pouco, encontrando limites que não conseguiu
superar. No início dos anos 1970, os países da Europa Central e Oriental
tiveram que se endividar com o Ocidente. Tudo isso levou a um aprofundamento da
lógica da industrialização forçada que acabou gerando ainda mais degradação
ambiental. Além disso, a planificação centralizada, que impulsionava a
industrialização a todo custo, subsidiou sistematicamente a energia, o que
gerou um sobreconsumo e ainda mais desperdício. Em princípios da década de
1990, segundo algumas estimativas, as economias do Leste Europeu requeriam
cinco vezes mais energia por unidade de Produto Interno Bruto que as da Europa
Ocidental. 9 A partir destas e de outras informações semelhantes, pode-se
concluir que cada país tem desempenho ambiental diferente, mesmo compartilhando
seu caráter econômico, seja capitalista ou socialista. As diferenças dentro de
um mesmo tipo de economia (capitalista ou socialista) estão relacionadas com as
próprias características naturais de cada país, com sua posição geográfica, com
sua história econômica, com a cultura de seu povo e, em grande medida, com as
políticas específicas e seu funcionamento administrativo. De modo que as
generalizações só podem expressar tendências não estatísticas, mas baseadas na
abstração de mecanismos causais derivados das relações de produção e, portanto,
não necessariamente presentes em nenhum caso. Mas isto não necessariamente
significa que se pode atuar desconhecendo tais tendências estruturais. Para os
países capitalistas, as tendências que explicam a degradação da natureza
derivam do funcionamento do mercado. 1 ° Mas, isso não significa que estas
tendências não possam ser, até certo ponto, revertidas com medidas políticas,
cujos resultados são diferentes conforme cada caso concreto. Para as economias
socialistas, não existe uma tendência intrínseca às relações de produção, já
que a planificação consciente da economia faz da política o substituto do
mercado capitalista como dotadora de recursos. Isto significa que a degradação
da natureza pode ser, como no capitalismo, um resultado não procurado, mas,
diferente do capitalismo, não há nada que impeça que a degradação seja reduzida
às possibilidades da tecnologia e à vontade política. Gare" mostra
diversas tendências de proteção da natureza de antes e durante as primeiras
décadas da URSS, com expressões e legislação mais avançadas das que ocorriam na
mesma época nos países capitalistas de vanguarda. Um caminho que, segundo o
autor, não prosperou posteriormente. Além disso, no decorrer de poucos anos, um
mesmo país pode ter desempenhos ambientais muito diferentes. De fato, a
preocupação pela questão ambiental e as conseqüentes políticas de proteção
decolam, basicamente, nos anos 1970. As primeiras políticas nacionais
ambientais de grande impacto foram as de Avaliação de Impacto Ambiental e, nos
Estados Unidos, quem primeiro as desenvolveu, isto não ocorreu até 1969. O
mesmo é válido para os países socialistas: suas políticas ambientais se
generalizam nos anos 1970. Os informes da OCDE mostram a variação nas economias
de seus países membros indicando uma dinâmica de desempenho muito diferente durante
a última década do século XX.' 2 O mesmo ocorre nos países socialistas. O caso
de Cuba é paradigmático no que se refere ao desenvolvimento da biotecnologia
como substituto de insumos químicos na produção agropecuária e como resposta às
limitações de divisas e abastecimento de produtos químicos durante as últimas
duas décadas.'
"As
causas da degradação no capitalismo e no socialismo"
As leis do
mercado comandam a economia capitalista. Isto significa que depredar ou
contaminar a natureza supõe um benefício econômico para o responsável. Quando
um processo econômico pode apropriar-se da natureza sem ter que pagar um preço
por isso, então terá vantagens econômicas. O mesmo ocorre quando se contamina,
já que se evitam os custos de tratamento dos efluentes. Por último, quanto mais
rápido é o ciclo de rotação do capital, maior é o lucro, daí que os curtos
ciclos de vida das mercadorias aumentam enormemente os resíduos. A conclusão é
que a economia capitalista gera eficiência no interior de cada processo produtivo
e ineficiência em termos sociais. Parte desta ineficiência se manifesta na
degradação da natureza, outra parte mais importante na degradação da sociedade
humana, com o aumento da pobreza e da desigualdade. De maneira espontânea, o
sistema capitalista degrada a natureza. Isto pode ser revertido de certa
medida, mas necessita de legislação e um processo de controle político e
administrativo que sempre vai na contra-corrente das leis do mercado. O caso
das economias socialistas é diferente. A política comanda a economia. A
degradação da natureza não é um resultado das leis do mercado, mas da aplicação
de um plano de produção consciente. Isto explica, por exemplo, que em muitos
países da ex-União Soviética, a legislação de controle de produtos tóxicos
fosse mais rigorosa que nos mais avançados países capitalistas, ainda que na
prática não se aplicasse. Como funcionaram as motivações para a degradação
ambiental nas ex-economias socialistas? Vários elementos devem ser considerados
aqui: a) a tecnologia era uma tecnologia herdada do capitalismo de antes da
consciência ambiental (antes dos anos 1970), uma tecnologia capitalista
degradante em si mesma. Isto foi argumentado pelo ambientalista norte-americano
Barry Commonert 4 ; b) a parte da produção que os países socialistas vendiam no
mercado mundial estava sujeita às leis do mercado, já que seus preços deveriam
ser competitivos com os dos países capitalistas, de maneira que as mesmas leis
econômi-cas do capitalismo se aplicavam para os ramos da economia dependentes
do mercado exterior; c) os planos de desenvolvimento estavam elaborados tendo
como parâmetro a concorrência política com os países capitalistas. Concorrência
na área armamentista, na segurança alimentar, na tecnologia etc. A guerra fria
permeava os planos de desenvolvimento. Por último, e contraditoriamente, d) é
conhecido que os defeitos da degradação ambiental são sentidos principalmente
pela população como consumidora (antes do que como produtora), mas o socialismo
real tinha poucos mecanismos para a participação dos consumidores na política,
o que dificultava este tipo de expressão. Apesar disso, quando conseguiram
organizar-se em vários países da Europa Central, tiveram um efeito impactante
na queda dos antigos regimes socialistas, como é o caso mais destacado da
Bulgária, no qual o movimento ecologista praticamente forçou o partido
comunista a aceitar a legalização dos partidos de oposição e a chamar as
eleições em 1990.15 No caso da União Soviética, a ecologia como ciência e a
proteção da natureza foram, durante muito tempo, um espaço relativamente
isolado da política oficial, que possibilitou o desenvolvimento de escolas
científicas e de organizações de defesa da natureza possivelmente consideradas
inofensivas pelo regime.' 6 Isto se trata do poder dos movimentos
ambientalistas, muito distante da capacidade política de seus similares nos
países capitalistas. No capitalismo, a degradação da natureza estava comandada
pela economia. No socialismo, a degradação estava comandada pela política que
atuava, por sua vez, com o objetivo de se igualar à economia capitalista. O
interessante é que, ao estar a degradação comandada pela política, o resultado
não é inevitável, como demonstra o caso da atual expansão da agroecologia e dos
controles agrícolas biológicos em Cuba.
Conclusões
Comparar o
nível de degradação dos países socialistas com os capitalistas, com o objetivo
de justificar que as causas da degradação ambiental não tem nada que ver com as
relações econômicas é, em grande medida, equivocado. Mesmo que o desempenho
ambiental de um país não seja o resultado direto de suas relações econômicas,
estas determinam as causas últimas de seu comportamento e são imprescindíveis
para elaborar políticas ambientais. A maioria das políticas ambientais das
economias capitalistas está baseada em instrumentos de mercado, isto é, em
mecanismos para incorporar à lógica mercantil as externalidades, e corrigir os
preços para orientar a produção em um sentido de defesa ambiental. Isto é assim
não só porque há um reconhecimento implícito ou explícito de que as leis do
mercado não contemplam insumos ou resíduos lançados ou provenientes da
natureza, mas também porque se reconhece que as leis do mercado não defendem,
por si mesmas, a natureza. Daí os esforços por elaborar uma teoria econômica
que incorpore a natureza (economia ambiental ou economia ecológica) •17 No caso
das economias socialistas, deve-se considerar que a política, mediante a
planificação, comanda a economia; em função disso, não se pode explicar o
desempenho ambiental a partir de tendências intrínsecas às relações de
produção, como ocorre nas economias capitalistas. Mas, o que é também
importante, é que o desenvolvimento da consciência ambiental é um avanço
civilizatório, que vai além do tipo de relações econômicas e que está
relacionado não somente com um desenvolvimento histórico da degradação da
natureza, mas também com o nível de desenvolvimento tecnológico e de
consciência que permite enfrentar, ao menos teoricamente, tais problemas. Isto
não ocorreu em termos mundiais até o início da década de 1970, o que explica
que as primeiras legislações favoráveis ao meio ambiente fossem deste período
tanto nos países capitalistas quanto nos socialistas. Por último, as
características concretas das economias socialistas, imersas em um mercado
mundial capitalista e em concorrência com esta economia, são da maior
importância para entender a degradação da natureza nos ex-países socialistas.
Resumo: Os escritores marxistas
argumentam que são as relações sociais capitalistas as responsáveis pela
degradação ambiental. Porém, outros acadêmicos nos lembram que a depredação e
poluição da natureza nos ex-paí- ses socialistas foram iguais, ou ainda piores,
que nos países capitalistas, implicando com isso que as relações sociais de produção
não servem para explicar a degradação da natureza. As seguintes páginas
pretendem clarificar alguns dos pontos dessa discussão.
Nenhum comentário:
Postar um comentário